A FÁBULA DO PÉ SUJO

Este conto foi escrito em Dezembro de 1999, para meu amigo Ricardo Siciliano como um presente para sua filhinha Carol.Por eu ser pscicótico, fiz uns ajustes finos e aí está. :)


Madrugada de Natal, entre 03:15 e 05:17 da manhã. As ruas desertas e ninguém, além deste que escreve e aquela figura, sentados num bar fedorento da Rua Prado Júnior. Tudo bem que pode parecer redundante na mesma frase usar fedorento e Prado Júnior. Mas nem era bem fedor o que subia do chão, era cheiro cítrico, ácido e estranhamente reconfortante, afinal, era Natal. Pois é. Ninguém mais acreditaria. Nem eu mesmo acreditaria em mim.
Uma garoa fina pairava no ar deixando no chão aquelas poças e o aspecto reluzente de algo que acabou de ser limpo. Mas para limpar aquele ambiente, teria que ser muito mais que água benta.
Putas, gigolôs, pequenos meliantes, bêbados, iam e vinham sem parecer notar aquele coelho sentado a minha frente. Ou não acreditavam em seus olhos ou não queriam mais acreditar em coelhinhos... Na verdade tanto fazia. Que passa pela PJ vê um pouco de tudo. Ele cantarolava baixinho “coelhinho se eu fosse como tú...” Sorriu. Depois o orelhudo sorveu o seu copo de chope de uma golada só.

(Eu)
- Vai com calma cara...
Tinha encontrado com o Coelhinho da Páscoa numa das boates de strip dali da área. O que Eu fazia lá em plena noite de Natal não vem ao caso. Mas o fato foi que alguns seguranças queriam enchê-lo de porrada por causa de uma conta que ele se recusava a pagar. Tentei interferir.

(Eu)

- Gente, vamos ser razoáveis!

Apanhamos os dois. Ainda me doía a nuca e um lado das costas. Os três chopes fizeram a dor ir embora rapidamente. Insisti:

(Eu)
- Vai com calma...

(Coelhinho)
- Calma é o caralho!
(Eu)
- Sem Stress...
(Coelhinho)
- Tá pensando que é fácil? Tens filhos? Uma trepadinha só e vem eles aos montes! Um saco...
(Eu)
- Ei, o que que há velhinho? – Falei imitando um coelho famoso.

O Coelhinho eriçou os pelos e me olhou enviesado.
(Coelhinho)
– E não vem me falar neste outro “filhodasputa” que faz sucesso e depois esquece da família. Ta lá nos States, com a bunda cheia de... Carrots!
Ele se aproxima de mim e abaixa aquela longa orelha encardida como se tentasse não ser ouvido pelas outras mesas.
(Coelhinho)
– Minha ex-mulher me deixou por causa dele... Um dia peguei os dois na cama. Depois ela veio me dizer “agora sei porque chamam seu primo de Pernalonga...” Mulher é tudo galinha! Cachorra! Vaca!
(Eu)
- Coelha! - Tentei levantar o astral, nada.
Um vulto rotundo se aproximou da mesa. Sua roupa vermelha tinha rasgos e estava suja de fuligem. A barba, outrora branca, agora estava cinza e macilenta. Ele bateu na própria roupa, e o pó subiu. O bom velhinho puxou uma cadeira e se joga pesadamente sobre ela. Faz sinal para o garçom.
(Papai Noel)
– Um chope e um Dreyer... E quem falar hohoho eu mando tomar no cu!
(Coelhinho)
– Fala Santa!
(Papai Noel)
– Me respeita rapaz! Olha minhas barbas brancas!
(Eu)
– Cinzas...
(Coelhinho)
– Porra, Santa Klaus é teu nome!
(Papai Noel)
– Desculpa! É que depois de aturar tantas crianças malas, fico até sem rumo.
(Eu)
- Crianças malas? Vocês dois são inacreditáveis...
(Coelhinho)
– Todo mundo diz isso...
(Eu)
– Não é isso! Vocês estão muito... Muito... Amargurados. Calma lá, vocês são ícones... – Disse com a voz pastosa. Papai Noel me olhou atravessado.
(Papai Noel)
– Meu filho – Coloca a mão gorda sobre mim – És fresco?
O Coelhinho solta uma gargalhada segurando o saco. Na verdade um saquinho. Ele engasga. Seus olhos vermelhos ficam injetados por um momento. Fica sem ar e seu pelo branco começa a ficar vermelho. O bom velhinho dá-lhe um tapa nas costas. Um naco de cenoura aperitivo voa e cai melado sobre o meu colo.
(Eu)
– Eca...
(Coelhinho)
– Foi mal aê... – diz sorrindo meio sem graça.
Papai Noel me encara de novo.
(Papai Noel)
– Vai vir com aquele papo de “espírito de natal”, “nascimento do menino jesus”, “paz na terra”... O caralho! Tudo é grana!
O garçom serve o Dreyer e ele toma de um gole só. Um fio marrom da bebida escorre pela sua barba. Ele limpa a boca com as costas da mão. O bom velhinho aperta os olhos e me encara com um olhar maroto. Vê claramente que não estou convencido. Ele se aproxima de mim, rosto bem próximo, sinto o cheiro de fuligem, roupa velha, suor e Dreyer, tudo junto.
(Papai Noel)
– Ou o que você acha que a criançada falaria de mim se eu não entregasse um presente este Natal? Filho da Puta seria pouco!
O coelho concordava com a cabeça.
(Eu)
– Então qual a recompensa final? O que vocês ganham com tudo isso?
(Coelhinho)
– Você não gostaria de saber.
(Eu)
– Diz... Pode dizer.
(Coelhinho)
– Você não agüentaria a verdade... – Disse ele imitando Jack Nicholson.
Minha vontade foi dar um tapão no pé da orelha do roedor. As chances de errar eram mínimas. Mantive o fair play.
(Eu)
– Diz logo cacete!
Papai Noel ficou de pé. Segurou sua blusa com as duas mãos e como um tarado exibicionista abriu suas vestes, mostrando a tatuagem enrugada entre as banhas brancas. E eu vi. Tudo tinha ficado claro. Isso explicava tanta coisa. Papai Noel balbuciou.
(Papai Noel)
– Merchadising...
Lá estava ele. O símbolo da Nike. Distorcido pelas banhas do velhinho bebum.
(Papai Noel)
– Muito antes do Ronaldo eles me procuraram. E não é só... Mostra a ele.
O Coelhinho ficou meio constrangido e se pôs de pé também. Ele virou de costas pra mim abanando o rabinho em forma de pompom.
(Eu)
– Qualé mermão... Acho que ainda não bebi bastante para tal aventura...
(Coelhinho)
– Calma rapaz... Relaxa e olha firme... Que só vou mostrar uma vez.
E levantando o pompom, eu vi outra vez. Ali perto da cloaca um “m”. O McDonald’s havia passado por ali.
(Eu)
– Jesus!
(Coelhinho)
– Eeste tem contrato com a Microsoft...
(Papai Noel)
– Está é a verdade meu filho. – Disse colocando as mãos nos meus ombros. Tomei o Chope num gole só. Os dois pediram Cairipinhas de Lima Limão e fui junto. Tudo rodava ao meu redor. O coelhinho e o velhinho voltaram a se sentar. Papai Noel fechava seu roupão e o Coelhinho me olhava sacana.
(Coelhinho)
– Acho que você esta precisando de algo forte. Ô amigão! - O coelhinho acenou para o garçom. – Traz um doze anos!
A primeira garrafa sumiu tão rápido quanto a segunda. De futebol, falamos de mulher e na terceira rodada resolvíamos os problemas do mundo. Eles riam das minhas tiradas e davam tapinhas nas minhas costas repetindo: Cara, você não existe! Logo eu? Logo quem diz isso?
Acordei com a água suja que lavava o chão do bar lambendo os meus pés. O sol de Copacabana espantava as putas, os gigolôs, os mendigos e vampiros. Olhei em volta e meus companheiros de noitada haviam sumido na madrugada do Rio. Teria sido um delírio, uma alucinação, um delirium tremis?
Não. Havia uma prova irrefutável. As duas lendas haviam deixado para traz uma senhora conta. Uma fábula!


#FELIZ ANO QUE VEM PRA TODO MUNDO!

Ler Mais

Bonecas


Tarde.

Ela e a boneca frente a frente. Só o vidro da vitrine separa as duas.

Tem quase a mesma altura. Não se sabe por ela ser mirrada demais para os seus seis anos, ou pela boneca ser gigante. Pelo menos pra ela.

Do lado de cá do vidro, uma figura magra, vestido largo. Um dos muitos que passou pelas outras irmãs antes de chegar nela. Canelas finas e sempre russas, cabelos duros, saltando os fios amarelos queimados de sol e quebrando toda aquela finura, uma barriga proeminente de verme e pirão de água. Nem um pingo de saúde brotava dali. O que ao longe, do outro lado da vitrine poderia parecer reflexo, era na verdade um espelho de contrastes. Um brinquedo, bonito, loiro e sorridente ao extremo.

Mas ela ganhava no olhar. Enquanto a boneca tinha um olhar morto e vidrado o dela era explosivo de um verde reluzente, vivo, esperto, incompreensível.

A mãe tinha que vir pelo menos três vezes por semana à cidade e ela a acompanhava. Trazia trouxas de roupas lavadas no ribeirão perto de casa. Querendo ou não, seguia naquela viagem longa e cansativa, um longo tempo a pé, depois o ônibus quente e, às vezes elas ficavam ali por horas sem comer ou beber nada, esperando a condução pra voltar. O cheirinho da roupa lavada a confortava.

E pra driblar o tempo e a fome, ela sempre que podia, transformava o próximo minuto em brincadeira e assim, as horas passavam mais rápidas.

Já havia algum tempo em que ela torcia para aquela hora chegar e poder ficar ali brincando com a boneca mentalmente.

- La-gri-mais-di-ver-da-di... – Leu a outra irmã para ela certa vez. Era o escrito lá na caixa, que envolvia o brinquedo, afirmando que o brinquedo chorava de forma real. Até nisso eram diferentes. E a Boneca conseguia o que ela não conseguia mais.

Noite.

Ela deitada olhando o teto. Uma das melhores brincadeiras era essa, com as sombras que o lampião projetava por todo amianto. E assim ela fazia figuras, criava bichinhos e coisas que a divertiam.

Na casa de um cômodo só o quarto era sala e vice-versa.

Era só chegar à mesa da janta para lá, varrer um pouco a areia do chão e fazer a cama. Na esteira dormia agora somente ela ao lado da mãe. O pai sempre chegava mais tarde, quando chegava.

Houve tempo em que era ela, as duas irmãs e os pais.

A mais velha um dia juntou o que podia e ganhou mundo. Vivia brigando com a mãe a qual chamava de nomes feios. Culpava a mãe por algo que ela não entendia. E a cada nova coça, muitas lágrimas e a promessa de sumir. Até que um dia o fez. A outra também se foi. Um tio chegou com algumas notas, entregou ao pai e a levou para passear, segundo a mãe. A irmã chorou muito, dizia que não queria ir. Mas foi mesmo assim com o tio arrastando-a pelo braço. Aí foi a mãe que chorou um bocado. Depois parou e ficou zangada. Por tudo.

Insistir em perguntar o porquê, era certeza de um bom tabefe. Ela, pra não incomodar mais ninguém, resolveu não chorar mais.

Já tinha lágrima demais no chão daquela casa. Daria pra fazer um lago de água salgada.

Uma das sombras era a imagem da irmã mais velha dando banho nela e cantando cantigas. Ela adorava aquilo. Ficava com cheiro bom e o mundo mais leve.

A porta se abriu e o lampião tremulou, fazendo com que a irmã sumisse mais uma vez. Se não fosse a valentia e o querosene, ele apagava. Mas não apagou.

Era o Pai chegando com grande estardalhaço. Xingando, derrubando coisas, maldizendo o mundo. Pela silhueta no teto, viu quando ele se despiu e se aproximou da esteira, dando arrotos que fizeram que o cheiro da manguaça empestiasse o local. Murmurou algo para a mãe que abriu espaço entre as duas. Adorava o cheiro da mãe. Aquele do pai, não. Porque ela se afastava?

Ele deitou entre elas e virou de costas para a mulher como se não existisse.

Levantou a fina coberta e se encostou-se murmurando com a voz trêmula e pastosa:

- Cadê a bonequinha do papai? – E começou a brincar com ela de coisas estranhas. Já tinha visto aquelas brincadeiras antes, com as outras irmãs, mas com ela era a primeira vez. Ela desejou que aquilo não demorasse muito, fechou os olhos e fingiu dormir.

A irmã havia deixado este truque como herança.

Manhã

Ela sabia que devia ser começo de mês.

Quando tinha manteiga para passar no aipim no café da manhã, o pai tinha ganho algum trocado.

Era pra ser um dia feliz.

Mordia o seu naco de mandioca cozida e não entendia porque sua mãe a olhava atravessada. Nem banho nela tinha dado.

Ela sentia dores e um corrimento descia por sua perna fina. Mas não falou nada.

Resolveu ficar num canto no quintal, torcendo pela hora de brincar de novo com sua boneca.

Tarde

Enquanto sacudia no ônibus, ela lembrava da vez que um moço lhe deu um sacolé. Este dia sim a viagem tinha sido deliciosa.

Enquanto chupava o saquinho, o líquido vermelho com odor de groselha, corria por seu queixo, pescoço e coloria seu vestido. Tudo era doce e fresco.

Desceram e caminharam um par de horas carregando trouxas. Ela queria dizer para a mãe que estava pesado, que o cheiro do sabão em pedra, com o cheiro da cachaça em seu corpo a estava deixando tonta, com ânsias... O medo sempre cala. O silêncio estranho durante toda a viagem deveria significar algo.

Foram a duas ou três casas, falaram com muitas moças, entregaram roupas, pegaram roupas, entregaram roupas, pegaram roupas, entregaram roupas e já voltavam ao ponto de ônibus.

A única novidade foi um suco de acerola e limão que havia tomado numa das casas. Aquela tia era sempre a mais simpática, um olhar que era um abraço e o cheiro de alfazema.

A casa dela era linda, branquinha e com chão de verdade. Ela às vezes imaginava morar ali, ter um quarto só dela, uma cama com colchão para dormir abraçada com sua boneca.

No quintal faria bolinhos de barro e margaridas para as duas brincarem de casinha. Teria uma coleção de roupinhas, uma para cada dia da semana.

As duas se vestiriam iguais até. Todo mundo pensaria que eram irmãs.

Sonhava com isso tudo enquanto tentava acompanhar o passo da mãe, alguns metros mais à frente. Ao longe avista sua lojinha. A ansiedade é grande e em momentos sente que seu coração vai saltar e sair correndo a sua frente.

A mãe parou no ponto e deixou a trouxa de roupas cair da cabeça para o chão. Fez isso há tantos anos que sua destreza em não derrubar qualquer peça é impressionante. Ela pousou as sacolinhas que carregava ao lado e caminhou até a vitrine com o rosto trincado. Do outro lado, ao invés de ver seu reflexo perfeito, via agora um trenzinho. Olhou em volta para se certificar se era a mesma loja, a mesma praça, o mesmo mundo. Era.

Sua boneca havia ido embora. Assim como a sua irmã mais velha e depois a outra. Assim como as tardes alegres, assim como os bolinhos de barro e tantas fantasias.

Foi quando chegou mais de perto e viu ali um rosto de olhos vidrados que choravam.

Olhos sem vida, tristes, distantes. Alguma coisa havia quebrado em sua boneca.

Ela pensou até em sorrir ao rever o brinquedo.

Mas não era nada daquilo. Era apenas o seu reflexo e lágrimas de verdade.

#
Ler Mais

As Sereias da Estante


“Do que vale tanta leitura se a memória é fraca?”.
Pensou, que este seria um ótimo começo para um romance. Uma sentença simples, direta e significativa. Um verdadeiro epitáfio para qualquer ambição humana de se marcar para posteridade.
Estava em meio à leitura de um livro que já havia começado um par de vezes. Prometeu a si mesmo nada mais de digressões e virou outra página.
As palavras não convenciam sua compreensão.
Acabou ficando ali parado. Indo e voltando na mesma frase do escritor fabuloso. Não estava mais atento o suficiente. E era um destes romances que mais que lidos, devem ser decifrados. Broxara.
Ficou com vontade de dizer ao livro:
- Desculpe, mas isso nunca aconteceu comigo antes...
Riu.
“Do que vale tanta leitura se a memória é fraca?”
A frase se repetiu em sua cabeça como um pretexto para que largasse a leitura. Uma voz de sereia fazendo com que emergisse em pensamentos mais distantes. Naufragava ao sabor das palavras e se deixava levar. Já que estava ali, nas profundezas, resolveu explorar.
Vasculhou na sua memória o primeiro livro que havia lido. Nada.
Olhou sua estante. Um orgulho. Títulos e mais títulos. Tentou fazer um resumo mental de cada um dos exemplares. A cada três, um simplesmente era novamente inédito. Mesmo folheando algumas páginas se perguntava quem eram aquelas pessoas, lugares e códigos.
Entristeceu.
“Do que vale tanta leitura se a memória é fraca?”
Lembrou que na biblioteca de Moscou, eram mais de um milhão de exemplares. Nas suas contas mentais, mesmo devorando um livro por semana, durante 20 anos não chegaria a 4.000. Com esforço a 6.000. Pouco, nada, era um insignificante.
Enfureceu.
“Do que vale tanta leitura se a memória é fraca?”
Foi indo e vindo. Do escritório para o jardim da casa. Vai e volta e logo as estantes estavam vazias. Todos os livros formavam uma pilha generosa sobre o gramado. Ao lado deles em outro monte, madeiras, estopa e jornais. Fósforo, brasa, chamas, labaredas.
Sem nenhum ritual mais elaborado começou a queimar um a um, cada exemplar. Folheava as três primeiras páginas, olhava a sua capa e atirava na fogueira. No começo com alguma mágoa, depois com um certo sabor de vingança.
A única coisa que realmente lamentava é que aquela frase, a que havia achado tão boa, fugira completamente da sua memória.

#
Ler Mais

Vida


Ele parou atrás dela. Ficou por um minuto olhando para sua nuca, o desenho do ombro, os cabelos curtinhos.
Ela se virou e o encarou. Ele desviou os olhos. Ela se voltou para frente.
A fila cresceu e se perdeu virando a esquina. Ele tomou coragem:
- Não anda, né?
- O que?
- A fila...
- É.
Pronto. Ele já tinha dado o primeiro passo. Agora só se ela...
- Mas deve andar. Tô aqui faz tempo...
Ele sorriu confiante. Agora era a vez dele.
- A vida é uma fila...
- Como?
- Minha avó dizia isso.
- Humm...
- Nunca entendi muito isso...
- Ah, deve ser no sentido da espera, das buscas, oportunidades...
Ele ficou confuso. Ela orgulhosa com a própria inteligência.
O silêncio não durou quinze minutos.
- Você segura meu lugar aqui um instante? Já volto.
Ela fez que sim com a cabeça e ele dobrou a esquina acompanhando a fila. Voltou carregando laranjas.
- Espero que goste... Trouxe pra gente.
Ela sorriu agradecida. Logo só havia bagaços dentro do saco plástico.
- Agora é sua vez. Já volto...
E ela sumiu acompanhando a fila. Logo voltou com duas garrafinha de água.
- Uma é pra você... – Ele sorriu agradecido. Ela bebeu em goles miúdos.
- Será que pega mal se sentarmos?
- Onde?
- Aqui mesmo... No chão...
Ele titubeou e ela se jogou ao chão como um desagravo. Puxou ele pelo braço que sentou meio sem jeito. Ficaram ali olhando a fila. Trocaram idéias, charmes e por fim beijos. Doces como são os primeiros. Intensos como se fossem os últimos.
A noite chegou e os dois dormiram ali juntinhos. Aos poucos não era mais uma fila, era um mundo deles, rodando numa órbita particular.
Na manhã seguinte a fome chegou e ele saiu e voltou com frutas. Ele teve sede e ela voltou com mais água. Nem falavam com as outras pessoas na fila e apenas desobedeciam a ordem, às vezes mudando de lugar, às vezes ficando lado a lado.
Dias e noites se passaram e a fila se tornou um lar, um abrigo, um refúgio.
- Estou grávida.
Ele sorriu. Era com certeza o segundo melhor dia da vida dele.
Depois tiveram mais três filhos. Logo cresceram, e algumas pessoas reclamaram na fila. Não era normal de uma hora para outra, aqueles furas filas.
E as crianças viraram adultos e se foram.
- Vou comprar água...
- Tem água aqui...
- Você sempre faz isso.
- O que?
- Nunca quer me dar um espaço só meu.
- Quer passar a frente?
- Não, só quero espaço.
Ficaram em silêncio quase dez dias.
Apenas comentários sobre o tempo, uma carta de um dos filhos e sobre a fila.
Um dia ele dormiu. Ao acordar onde ela deveria estar apenas um bilhete, escrito:“Sua avó tinha razão. Só que a fila anda.”

#
Ler Mais

A Tal da Portabilidade


Tempos de portabilidade. O cara chega no balcão da loja acompanhado da mulher. Lá se vão 25 anos de casamento. Baseado em fatos reais.

(ATENDENTE)

- Bom dia, em que posso ser útil?

(MARIDO)

- Já está valendo a portabilidade não é meu amigo?

(ATENDENTE)

- Com certeza senhor...

(MARIDO)

- Pois bem. Vim trocar minha mulher...

A mulher faz cara de surpresa.

(MULHER)

- Que isso Almeida? Você está maluco?!

(MARIDO)

- Mariza, se comporta que estou falando com o moço...

(ATENDENTE)

- Qual motivo?

(MARIDO)

- Nossa, ta dando muito defeito!

(MULHER)

- Defeito?! Defeito? Que absurdo, seu... seu... Éumabsurdoquevocêmetrateassimdepoisdetantosanosdecasamentovocêéquevivedandodefeito – A mulher desandou a falar sem parar. Nem respirar ela respirava.

(MARIDO)

- Tá vendo? Travou a falar. Por isso que às vezes não ouço mais e não entendo quando falo. Fora sumir as palavras como agora...

(ATENDENTE)

- É pelo que estou vendo, tá travando mesmo...

(MARIDO)

- Pois é, e já liguei para a garantia, mas os pais responderam: nem pensar! Aí decidi: vou trocar!

(MULHER)

- Você falou com papai e mamãe pelasminhascostasissoéumabsurdoqueeles...

(MARIDO)

- Respira mulher! Não vai ter a idéia de pifar no dia da troca!

O atendente começa a digitar no terminal a sua frente.

(ATENDENTE)

- Qual ano e modelo?!

(MARIDO)

- Ah, antigo... Eu sei que o ano é 62, mas tem dito por aí que é 64, 65...

(MULHER)

- Nasci em Dezembro de 67! Vocêsabedissonemmevenhacomestepapoquevocêsabe muitobemminhaidade – e mais falação. Apnéia total.

(MARIDO)

- Não falei?!

(ATENDENTE)

- Isso acontece muito... E o modelo?

(MARIDO)

- Quando peguei era praticamente uma Ursula Andress, uma Bo Dereck... Lembra?

(ATENDENTE)

- Mais ou menos senhor... Não é muito minha época.

(MULHER)

- Ainda sou de virar a cabeça Almeida!!

(MARIDO)

- Não meu amor, você hoje é dor de cabeça! Por isso que dá problema na conexão!

(ATENDENTE)

- Humm... Ta dando problema na conexão é?

(MARIDO)

- Pois é... Teve uma época que eu até tentava conectar. Aí, era a tal dor de cabeça, não tinha clima, ou ocupado... Aí, não tem banda larga que segure né?

(MULHER)

- Quem? Banda larga você? - a mulher dá um risinho cínico e emenda mais blábláblá.

(ATENDENTE)

- E o número? Quer o mesmo?

(MARIDO)

- Ih! O número mudou muito... Muitos dígitos foram acrescentados ao original! Que o diga a balança! Ah, e já ia esquecendo: é segunda mão!

A mulher pára de falar puxando o ar horrorizada. Ela faz biquinho e faz que prende o choro.

(MULHER)

- Almeida, você sabe que casei virgem!

(MARIDO)

- Não minha filha, você é de Sagitário!

O Marido se aproxima do atendente e cochicha.

(MARIDO)

- Talvez terceira ou quarta mão, fora as linhas cruzadas durante o tempo de contrato!

(MULHER) (enfurecida)

- Linha cruzada? Linha cruzada você vai ver na sua cara seu safado!

A mulher parte para cima do Marido que ginga daqui, ginga dali, foge de uma bolsada, de outra. Enquanto desvia, qual ninja, o marido tripudia.

(MARIDO)

- Ou você acha que eu não sei do Pacheco? Do vendedor de sucos? Do vizinho do 307? Tô antenado! Viva a liberdade de escolha! Portabilidade! Santa portabilidade!

O atendente chama a segurança e dois brutamontes aparecem e arrastam a mulher para o fundo da loja. Ela vai se debatendo e xingando a tudo e a todos. O marido encosta no balcão recuperando o fôlego. O atendente mantém seu ar replicante, olhar simpático e sorriso vidrado, digitando freneticamente.

(MARIDO)

- Pô amigão... Desculpe o papelão. Mas esta mulher e eu, não tínhamos mais ligação...

(ATENDENTE)

- Que isso senhor. Estamos aqui para solucionar seus problemas. E isso tem acontecido muito.

(MARIDO)

- Imagino.

(ATENDENTE)

- Se o senhor visse como está o estoque... Pronto pra escolher um novo modelo?

(MARIDO)

- Sei não, to pensando em algo diferente.

(ATENDENTE)

- Quer ver nosso catálogo, quer alguma sugestão?

(MARIDO)

- Hummm... Este segurança que apareceu a pouco, o mulato, grande, mais novinho... Ele é 3G?
Ler Mais

Dia de Mãe


Ela já tinha perdido as contas de quantas vezes havia trocado de roupa.
Não sabia nunca que tipo de traje pedia cada ocasião. Aquela então, nem passava pela sua cabeça.
O sol iluminava com empolgação aquele lado de Copacabana e parecia refletir nas pessoas que atravessavam as ruas correndo, sedentas pelas lambidas da água salgada. A praia recebia e espalhava a todos, naquela hora, em pleno domingo fervilhava, e de longe não se sabia o que era grão de areia ou de gente.
Tumulto maior que aquele só dentro da cabeça de Sandra.
Ligou para a melhor amiga para buscar ajuda sobre seu visual.
- Eu acho que você está é doida, Sandra! Nunca viu a mulher na vida e já vai recebendo ela em sua casa?!
A melhor amiga sempre teve uma mãe por perto. Como poderia ajudá-la na escolha do melhor modelito? Pensou até que ela poderia estar com aquela pontinha de inveja por nunca ter tido a oportunidade de um grande encontro em sua vida. Mas no fundo no fundo sabia que a amiga queria ir mesmo à praia e o tal reencontro havia acabado com seu programa.
Sandra havia investido um bom dinheiro e tempo na procura. Dois detetives, inúmeras ligações, viagens, até em programas de rádio ela conseguiu espaço para fazer seu apelo. Dois anos neste projeto.
Um dia surgiu o telefone de uma ex-vizinha e daí outro de uma prima, de uma amiga e por fim a encontrou. E lá se iam quase trinta anos de espera.
Por telefone trocaram poucas palavras e Sandra se debulhava em lágrimas enquanto falava. Resolveram marcar ao vivo, apagando o que passou.
Começaria do zero, sem mágoas, cobranças, acusações...
Do seu passado, Sandra lembrava em flashes. Foram muitas casas e muitas infâncias diferentes para uma pessoa só.
De casa em casa ela conheceu o afeto, o abuso, o descaso, a dor e muitas vezes o que mais a chocava: nada. Pessoas que não refletiam nela a menor emoção ou curiosidade.
Nestes casos nem era a família que desistia dela, ela fazia de tudo para ser um pouco simpática, afável e virava um móvel feio em meio à mobília.
Melhor ter alguma emoção, boa ou ruim, do que não ter nenhuma.
Aos poucos acabou se acostumando àquela vida de vários lares, várias mães e mãe nenhuma. Era como se fosse sempre um natal, uma casa nova, um novo colo, novos cheiros e ela sendo presenteada com novas pessoas.
Quem olhasse de longe pensava que era um poço de infelicidade. Que nada, afinal, não tinha referência. E cada um sabe a dor que tem. E o peso.
Desligou o telefone e resolveu trocar de roupa mais uma vez. Algo mais leve, solar, despojado talvez. Queria estar radiante.
O interfone tocou e ela em meio à troca. Acabou ficando com um pouco de cada estilo e achou, diante do espelho que até ficou bem. Atendeu o interfone e sentiu um nó na garganta, a voz quase não saiu.
- Alô?
- Dona Sandra? Dona Francisca para a senhora...
- Pode mandar subir, Vanderlei.
Um silêncio se fez. Longo.
- A senhora tem certeza, Dona Sandra? – Cochichou Vanderlei.
- Sim, Vanderlei. - Colocou na voz uma firmeza distante, daquelas que esclarece bem a classe de cada um. - Mande subir!
Vanderlei desligou sem um pio. Ela correu e abriu a porta. Olhou a luz do marcador de andar mudar ao lado do elevador. Nunca nove andares demoraram tanto a passar. No oitavo, Sandra entrou em casa e fechou a porta. As mãos suadas, pizzas de suor desciam pelas axilas, abaixo do nariz uma gota se instalou.
Quando ficava nervosa ou muito excitada, sempre acontecia aquilo. Suava descontroladamente. E às vezes, um cheiro forte e agridoce vinha junto. Lembra que numa das casas ao sentirem seu odor lhe mandaram embora sem mesmo passar da porta.
Levantou os braços e aproximou as narinas o máximo de suas axilas. Nada. Só suor mesmo. Nem dava pra notar.
A campanhia tocou tímida. Sandra se recompôs e olhou pelo olho mágico. Viu de relance a figura miúda à sua porta. Recuou do olho mágico. Falta de educação, sabendo que é, mesmo assim olhar pelo buraquinho na porta. Será que ela notou?
Respirou fundo, colocou o melhor sorriso que podia no rosto e abriu a porta. Na sua frente surgiu uma figura mirrada, amarelada, muitas rugas. Tinha os cabelos de três cores. O branco da raiz vinha seguido de preto e por fim um amarelo queimado. Trajava um conjunto jeans envelhecido e usava uma capanga embaixo do braço. Não esboçou reação alguma e olhava para Sandra sempre na altura do peito.
Um sorriso de canto de boca foi o que ela conseguiu decifrar naquela cara estranha.
- Mãe?
A outra por sua vez esticou a mão num cumprimento de negócios.
- Francisca. Prazer!
Sandra que já havia aprontado um abraço apenas abaixou um dos braços e retribuiu o aperto de mãos, sacudindo o braço de sua genitora com um entusiasmo além da conta.
- Entra, por favor – Dizia Sandra sempre sorrindo.
Ela entrou e ficou em pé no centro da sala. Sandra olhava para a mãe embevecida.
- Me chama de Chica, é como todo mundo me chama...
Sandra ainda vestindo o mesmo sorriso e não sabia o que fazer. Fez sinal para uma poltrona e a Mãe sentou. Ela sentou no sofá à frente.
- O seu mudou, né?
- Como?
- O seu nome... Agora é Sandra. – A Mãe olhava em volta como se fotografasse o local. Olhava para tudo menos a filha.
- Ah, sim. Uma das famílias que morei deu este nome e pedi pra manter. Mas tive outros...
A Mãe soltou um muxoxo.
- Doralina era melhor. Nome da sua avó.
- Eu não sabia... Que legal! – Raízes! Sandra pensou que afinal havia encontrado as suas origens. – Como ela era?
- Velha. Estúpida. Doente. Morreu de cirrose... Ou diabetes... Não lembro. – A Mãe se pôs de pé e começou a andar pela sala olhando os porta-retratos.
Caminhava mastigando o ar num tique pavoroso. Soltava pequenos ruídos, dava muxoxos como se discordasse do que via.
- Você fuma? – Perguntou a Mãe.
- Não. E não acho bom a senhora fumar...
- Você.
- Como?
- Me chama de você. – A Mãe voltou a se sentar, agora no sofá ao lado de Sandra.
- A senhora... Quero dizer... Tá com fome?
- Mais ou menos. Fumaria um cigarro. Mas esqueci os meus.
Almoçaram em silêncio. A mãe fazia grande ruído e no final futucava os dentes com a língua ruidosamente. Sandra olhava fixa para o prato e vez por outra tentava puxar um assunto. As investidas terminavam em grunhidos, chiados e ruídos estranhos que sua mãe produzia. Nada de volta.
- Você fuma?
- Não.
- Ah é.
Sandra começou a retirar os pratos da mesa, indo e vindo da cozinha. O outro cômodo começou a funcionar como um refúgio para pensar no que fazer. Toda vez que mudava de ambiente se sentia mais leve. Alguma coisa a incomodava no cheiro da mãe e não sabia o quê. Era como o dela, só que mais pesado, forte, ardido.
- Você é a cara do seu pai, escritinha... – Ela sentiu que pela primeira a Mãe olhava para ela no rosto. Sentiu que iria chorar com a bandeja de rosbife nas mãos.
Deixou a carne na cozinha e voltou apressada. Puxou uma cadeira e sentou-se mais à beirada, empertigando o corpo com interesse.
- Aquilo não prestava. – Disse a Mãe cortante. A filha murchou. Olhou em volta e a travessa de arroz foi sua bóia salvadora. Agarrou-a e dirigiu-se a cozinha. Queria gritar, mandar aquela mulher embora, acabar com aquilo tudo. Começou a lavar e esfregar as louças com raiva. Jogou toda a comida fora. Não queria nenhum resto, vestígio ou afins que lembrasse a tal de Chica. Armou seu sorriso e voltou à sala. Sua mãe não estava mais lá. Estranhou. Olhou em volta e nada. Ouviu um ruído vindo de seu quarto e caminhou até ele.
A Mãe, sentada em sua cama, revirava a sua bolsa.
- Mãe?!
Pensou que para a sua sorte sua carteira, força do hábito, dormia na cômoda da cabeceira. Chica apenas deixou a bolsa de lado, nem mesmo a encarou e apenas começou a olhar o quarto a sua volta.
- Queria ver se tinha cigarros...
As duas ficaram em silêncio.
- Quer um café? – Disse Sandra como uma forma de tirá-la do quarto e a si mesma daquela situação. A Mãe deu de ombros e se encaminhou para a sala. Sandra colocou a água no fogão e voltou à sala. Chica já estava na porta.
- Já vou indo.
- E o café?
- Não gosto muito de café.
Chica sem cerimônia abriu a porta e saiu para o corredor. Voltou-se para Sandra mais uma vez.
- Pode me emprestar um trocado? Pra comprar um cigarro...
Sandra ficou sem graça. Andou apressadamente de volta até o quarto, abriu a cômoda e pegou sua carteira. Tomou um susto ao ver que a outra a acompanhara. Mas não perdeu a pose e fingiu naturalidade.
Pode ver pelo canto do olho sua mãe esticar o olho para dentro de sua carteira, como se quisesse ver todo o conteúdo. Enquanto ela lançava seu olhar sobre a mãe, Chica lançava o mesmo olhar sobre a carteira.
Ali ela notou toda a semelhança. Tão parecidas, não poderiam ser outra coisa. Esticou uma nota razoável na direção de Chica que, pela segunda vez na tarde, sorriu.
De volta ao corredor, um novo aperto de mãos, algumas palavras voaram ao teto, ruídos e por fim o elevador chegou. Nenhuma troca de olhar. Sandra fez questão de tocar o botão do térreo.
A porta pantográfica fechou e ela acompanhou cada andar como se fossem as toneladas retiradas de sua costas.
Pela janela viu Chica se afastando pelas ruas lotadas de Copacabana, em meio ao aos ambulantes, banhistas e logo virar grão.
No final, ainda na janela, fez apenas uma pequena nota mental:
- Segunda-feira, colocar pelo menos mais duas trancas na porta.



#Valeu Franklin "Pesanervos" Dassie pelo auxílio luxuoso no título.
Ler Mais

Bacon


Debaixo do papelão e do jornal surgiu o moleque.

A figura esquálida e encardida parecia mais à sobra do que o próprio ser que a carregava. Bermuda larga, suja, camiseta sem mangas, uns dois números maiores com propaganda de político, suja, e tênis, um pé de cada, sujos. Todo o conjunto tinha um tom sobre tom marrom que combinava com a pele e a cor do centro da cidade.

Ele espreguiçou até não poder mais e em certo momento as costelas pareciam querer rasgar aquele pele macilenta que cobria o seu peito.

Tirou o pinto pra fora e urinou fartamente sem ligar que ali, na Avenida, logo as nove da matina, a maioria das senhoras e senhoritas passavam a caminho de seus trabalhos. Por um momento parou de ser paisagem e virou absurdo.

O que antes parecia uma figura de dar pena, daquelas que a gente passa ao largo e ao longe parecia um cano vazando, agora, por conta do atentado ao pudor, lembrava um ser humano.

E a urina jorrava farta, amarela e brilhante, descrevendo um arco no ar. Ele parecia sentir orgulho daquilo e brincava com a potência do jato procurando acertar cada vez mais longe.

Sorria mostrando os dentes beges e irregulares. Alguns eram cacos desenhando um sorriso devastado.

Idade? Quando cutucava os vidros, tentando vislumbrar de fora os fantasmas que guiavam os carros, fazia cara de 10 ou 11 anos.

As vezes a inocência nos olhos batia os 9 anos. Quando tocava terror, abusando dos outros garotinhos e garotinhas, mostrava uma virilidade de mais de 18 anos. Por isso, dava pra fazer uma média.

Nem ele sabia. Nem a ele importava.

Acabou de mijar e balançou o pênis como se fosse um troféu e um abuso a todos. Viu de longe o Guarda Municipal que se aproximava avisado por alguém. Deu de ombros.

Nem por milagre com aquela barriga toda o meganha poderia alcançá-lo. Mas o seu instinto sabia que ele não viria sozinho. São sempre covardes e não seguem regras na brincadeira. Sempre vem em dois contra um ou mais.

Por isso, era bom não ficar mais por ali.

Amanhã arrumava outro quarto, tem tantas opções. Afinal, a cidade há mais de tantos anos era sua casa. Toda. Sala, cozinha, quarto, playground, piscina... Tudo era dele. E cada canto ele conhecia como cada ponto manchado em sua pele.

Nem correu. Apenas apressou o passo e sumiu como camaleão na paisagem. Puxou a pele da barriga alongando o estômago. Sabia que aquilo significava fome.

A cola de sapateiro já tinha feito com que pulasse meia-dúzia de refeições. Mas agora a coisa estava crítica.

E naquela hora sempre tinha uma senhorinha ou um boy que, tomando café, compadecia da cara que usava àquela hora. Coitado.

Tinha uma casa de sucos ótima duas ruas mais abaixo e ele caminhou sem pressa. Ao contrário do que se imagina, adorava aquela sensação de “o que será que vou comer?” Da última vez teve um resto de café com leite, um gole de refresco de acerola, meio misto quente e depois de uma futucada no lixo achou uma coxinha quase inteira.

As vezes em dias de feira tinha sempre frutas que escolhesse caídas pela rua. Quase todas limpas, quase todas boas, quase todas saborosas.

O dia de verão prometia ser quente e enquanto caminhava fez a sua programação mentalmente. Depois do café um bom mergulho no chafariz perto da igreja grande. Ali também poderia fazer suas necessidades e partir para planejar o almoço.

Queria experimentar o novo hambúrguer que via nas propagandas dos ônibus e uma vez viu no painel de TVs na loja. Todo mundo que comia o novo sanduíche sorria e ficava mais feliz. Aquilo devia ser melhor que a cola. Riu sozinho.
Sabia qual era a lanchonete pelas cores e pela marca. Chegando lá era só apontar:

- Quero aquele da foto e uma Coca grande.

Esta parada de juntar letras definitivamente não era com ele nem pra ele. Não entrava na sua cabeça.

Enquanto cutucava os clientes da lanchonete, com aquele discurso ensaiado, pensava em onde encontraria o hambúrguer da vez. Hambúrguer era uma forma carinhosa de tratar suas presas, seus ganhos.

- Me paga um café, por favor? – Era um mantra repetido a cada novo puxão nos clientes. Muitos olhavam e balançavam a cabeça negativamente. Outros agarravam a bolsa e negavam também. Outros olhavam e nada viam, só o marrom do centro. Ele mesmo nem ouvia suas palavras absorto em seus pensamentos.

Mas, água mole em pedra...

- O que você quer? – Aquilo o despertou do plano perfeito. Porta da grande loja. Por volta de meio-dia ficava lotado e muitos garotos ficavam por ali pedindo. Ele viu quase como real o hambúrguer saindo com uma bolsa grande, cheia, com várias coisas para ele.

Era tanta a experiência que ele podia dizer claramente o que havia na bolsa só pela cara do sanduba. Sabia só de olhar quem tinha um bom celular, não aquelas merdas pré-pagas, as que teriam um bom batom pra trocar por um boquete, as que teriam fotos pra ele imaginar sua família. Era crânio nisso.

O bom samaritano teve que repetir pra ele cair em si.

- O que você quer moleque?

Ele respondeu meio puto.

- Um joelho e suco de laranja.

- Ô Juarez, da um joelho aqui e um refresco pro garoto.

- Não quero refresco não, quero suco!

- Tu é folgado hein moleque...

- Este refresco é uma merda.

- Então come só o joelho e não fode! – Pra ele tanto fazia. Nem estava com sede. Tinha fome e o joelho o seguraria até o hambúrguer. O atendente escolheu um da vitrine e ele apontou o vidro.

- Este não, o outro! – Foi como se ele não existisse. E o Juarez fez que não ouviu e esticou o salgado na direção dele. “Nessas horas eu queria ter um berro! Não, uma granada seria melhor... Levava todo mundo comigo sorrindo...” E abocanhou com raiva seu café da manhã.

Deu as costas para a lanchonete e observou a rua.

- De nada, hein? – Falou o homem já arrependido de seu gesto nobre.

Ele não ouviu. Ou não quis ouvir. Ou se ouviu, não ligou. O homem já era passado.

Pegou carona no vai e vem do centro e as pessoas da lanchonete sumiram pra ele e vice-versa. E para sua surpresa não precisou caminhar muito. Dali de onde estava avistou um suculento hambúrguer duplo. Ele já tinha provado um daqueles antes. Era um verdadeiro xis-tudo.

Sacolas nas mãos, ar distraído e uma bolsa de couro linda, gorda, farta, dando mole.

Roliça daquele jeito, apenas um esbarrão e ia ao chão. Enquanto o povo entendia o que estava acontecendo, ele puxava a bolsa, e saia livre, dobrando a esquina e ganhando a avenida principal.

Aquela hora era perfeito, pois a maioria dos de farda azul ou estavam no estresse do trânsito ou fazendo sua boquinha de café da manhã 0800, porque afinal ninguém é de ferro. Sabia que o principal era criar tumulto, pânico, terror. As pessoas paralisam e este é o tempo, para ele mergulhar na cidade tornando-se mais uma vez invisível.

A invisibilidade é um dom dos que são largados como ele. Não, na cabeça dele nem passa pena, ou menos valia. Pois quando quer e precisa, ele se faz notar.

E a Sra. Xis-tudo está prestes a perceber.

Ele caminha despreocupado e parece que faz compra com a dona. Um toque de celular. Hummm, não poderia ser melhor. Ele vê quando seu almoço pára, solta as bolsas no chão e procura o celular na principal. O aparelho é bacana.

Aquele seria um momento ideal, afinal a distração é total. Mas não, o aparelho é perfeito. Daquele que tem tecladinho e um monte de “praqueisso”.

Podia esperar e o papo parecia que ia levar tempo.

Jogou o joelho ainda pela metade fora e ficou ali de cócoras, observando o sol e o movimento. Sem nunca tirar o olho da presa. Seu Xis-tudo falava a vontade e parecia não ter segredos para o mundo.

Ouviu em detalhes do tratamento da mãe, já idosa, tadinha, sim, sim, oitenta anos... As fezes já sem consistência, a doença de nome estranho, a mudança constante de enfermeiras – “Ninguém tem paciência com ela...” – a promessa da visita, beijos, ligo sim, tchau.

Ele esticou o pescoço felinamente e mesmo agachado parecia vislumbrar o mundo de delícias que viriam de dentro daquele troféu.

O exato momento ficava entre o colocar do celular dentro da bolsa e o soltar antes dela voltar ao ombro. Ali estava o ponto frágil.

Era crânio nisso.

Preparou o bote e sentiu a boca se encher de água na expectativa do banquete.

Não seria apenas um. Com certeza seriam dois ou três da novidade da lanchonete de marca.

A madame apenas deixou o aparelho escorregar para dentro da bolsa e ele partiu a caça.

Seu corpo se movia com graça e leveza. Seus músculos apareciam sobre a pele num desenho lindo.

Já imaginava os arrotos do gás da Coca-cola. A sensação da barriga cheia, morna, dura.

Num movimento gracioso fez a senhorinha rodopiar no ar, junto com ele num balé mágico e desabar no chão quase que imediatamente. Em segundos a bolsa já estava em suas mãos e a rua se abria a sua frente com um mar de possibilidades. Nada pessoal, só a vida na savana.

Pediria mais molho, queijo extra e bacon. Muito bacon. Sua boca salivava e sem sentir sua baba voou no vento.

A bala estava apenas a milímetros de sua cabeça.

O bacon crocante foi seu último pensamento antes de virar um pequeno ponto vermelho naquele marrom todo.


#Vale a pena ver de novo. Na segunda, post novo.
Ler Mais

Marcadores

3G (1) A Fábula do Pé Sujo (1) A Fábula do Pé Sujo. (1) A Lápide (1) A Tal da Portabilidade (1) A Unidos dos Dois na Sala (1) A Virada do Ano (1) aeromoça (1) aladin (1) Amor a primeira vista (2) amores impossíveis (1) ano novo (1) Arrumação (Em Cadeados) (1) As Cores Dela nas Paredes da Cabeça Dele (1) As Sereias da Estante (1) Assalto (1) assassinato (1) Até que a morte nos separe. (2) avião (1) Bacon (1) barrinha e cereal (1) Bonecas (2) Cabeça (1) cachorro (1) Cadê Deni”zs”e? (1) Caixa Preta (1) caos aéreo (1) carros (1) casa de malucos (1) cereser (1) Céu de Cereal (1) circo (1) Com Deus Só a Vista. (1) concurso (1) construir (1) conto (17) Conto de amor (1) Contos do Rio (4) Copa do Mundo (1) Copacabana (1) Coração Roubado (1) Cortazar (1) cronica (1) Crônica (1) Crônicas (1) desejo (1) Dia de Mãe (1) Dia dos Namorados (2) ditos (1) Do Frio e Branco Azulejo (1) Do Ponto de Vista da Inveja (2) Dos seus saltos (1) Encontros (1) engarrafamento (1) Engolir Palavras (1) espumante (1) Existe Vida após a Morte. (1) fantasia (1) farol (1) Fred (1) Fundo do Poço (1) gênio (1) Ginger (1) Hamburguer (1) humor (6) Idéias (1) Kama $utra (1) lâmpada (1) linchamento (1) luz no fim do túnel (1) Mãe (1) Mãe e Filha (1) manicômio (1) Maradona (1) Marias Chuteiras (1) Me acertou em cheiro (1) menage (1) Mentirinha (1) Mil e uma noites (1) Moleque de Rua (1) Musical (1) O Buraco (1) O Cão de olhos com brilho de diamantes (1) O Engolidor de Palavras (2) O Gênio Ombudsman (2) O Globo (1) O Homem que Não Queria Ir a Copa do Mundo (1) O Que Não é Mais Gente (1) O T da Questão (1) O Último Dia (1) obra (1) Obras (1) orelhão (1) Os cílios postiços dos postes da avenida (1) pão doce (1) Passatempo (1) Pensamento (1) pião (1) poema (7) poesia (6) Portabilidade (2) prosa (1) Quando Ela Perguntou a Ele se estava caindo (1) revertere ad locum tuum (1) rosquinha (1) Saindo do armário (2) Sobre a última Estação. poesia (1) soco (1) sonha-me (1) suruba (1) swing (1) Técnico de Futebol (1) tecnologia (1) Teu Esmalte (1) Teu jogo (1) Top Blog (1) Traição (1) troca de casal (1) trocando de mulher (1) Ursula Andrews (1) Vida (2) vida de cão (1) Vida de Operário (1) Vida. (1) Vingança na carne (1) violência (1)